É engraçada a visão que os brasileiros têm
da Europa. Como se fosse um continente com mil cidades lindas, onde tudo é
perfeito, onde todo mundo é educado, onde tudo funciona perfeitamente bem. Um
visão meio Disney. Um mundo cor de rosas. Todos ricos e felizes para sempre.
“Nossa, sua filha está fazendo intercâmbio
na Itália? Que chique!” “Poxa, doutorado na França? Não é para qualquer um,
hein?” “Foi estudar na Espanha? E ainda ganhou bolsa? Deve estar passeando pela
Europa toda.”
Lamento dizer que não é bem assim. A
primeira vez que se vem se encanta com tudo. Lembro de como foram encantadoras
as duas vezes que vim passar quinze dias na Europa. Na terceira vez, passei um
mês. E foi quando conheci a Itália e a sua capital. Roma, nossa, Roma sempre
foi um sonho. Um dos principais palcos da Antiguidade, onde se concretizou e
onde há resquícios de tudo que aprendemos no Ensino Médio sobre Idade Antiga e
Idade Média.
Quando pisei no centro de Roma, dois anos
atrás, me deixei levar pela magia de estar na cidade que em cada esquina tem
alguma ruína ou algum um museu – e que por si só é um imenso museu.
Foi de fato encantador. Foi de fato
concretizar sonhos. E dessa viagem veio o sonho de voltar, conhecer melhor,
quem sabe morar por alguns meses.
E cá estou, dois anos depois, morando em
Roma.
A linda Roma, a encantadora Roma, uma das
cidades mais visitadas do mundo.
Sim, ela é de fato bela. Mas não tanto
quando se começa a perceber a cidade como moradora daqui.
Sinto informar que mendigo, pobreza e
roubo não são exclusividades brasileiras. Meu celular foi roubado no réveillon
(e cadê a virada com esperança de ser uma pessoa melhor no ano que se inicia?) e
sempre ouço histórias dos tais batedores de carteira, nos ônibus, nos metrôs,
em todos os lugares com grandes aglomerações de pessoas e, principalmente, de
turistas.
Também não me canso de ver infinitos
pedintes em cada esquina, e no metro e na porta das igrejas e no Vaticano. No
Vaticano eles ainda são capazes de ajoelhar e ficar em posição de oração,
deixando apenas um bilhetinho ao lado de um copo pedindo ajuda e ansiando por
pegar turistas que se sentem no dever de dar uns trocados para os pobres
coitados – e quem negaria fazer uma boa ação na casa de Deus e do Papa?
Também não é exclusividade brasileira a
tal da burocracia. Na verdade, a italiana me parece bem pior. Para abrir uma
conta, gastei a manhã inteira (e meus outros amigos ficaram o dia inteiro e
ainda tiveram que voltar no dia seguinte) e tive que assinar zilhões de papéis
(sem exagero, assinei umas vinte vezes, e depois da décima eu só fazia um
rabisco que acho que nem de longe passaria no reconhecimento de firma).
Para fechar um contrato de internet até
que não se exige muito: um documento e o códice fiscale (código como o CPF, mas
bem maior e com mistura de letras e números). Mas para rescindir o contrato não
é nada – nada fácil. Para quem acha um saco ficar meia hora com a atendente da
Net para cancelar a linha ou mudar o plano, experimente fazer essa solicitação
na Itália: você precisa escrever uma carta e enviá-la (através da nada
eficiente Posta, os Correios da Itália) para o diretor da operadora na cidade
da Sede da Empresa com antecedência mínima de 15 dias justificando a
solicitação de cancelamento.
E para quem reclama das taxas bancárias
brasileiras, aqui se cobra até mesmo para transferir para contas do mesmo banco
– e do mesmo titular! Cada transferência no caixa eletrônico custa um euro. Na
boca do caixa tudo é mais caro e ainda tem mais fila e funcionários irritados e
rabugentos. (Já imagino a dor de cabeça que será cancelar a conta do banco)
Não me esqueço do dia em que fui fazer a
minha primeira transferência na boca do caixa. Depois de uns 40 minutos
esperando para ser atendida, eu tive que preencher um formulário, colocando os
dados da conta e o valor da transferência e, pasmem!, a quantidade de notas de
cada valor. Exatamente: têm lá uns quadradinhos onde você põe quantas notas de
10, de 20 e de 50 euros você está entregando para o Caixa. Vai entender.
E não chegou ainda para eles o conceito de
Internet Banking como forma de diminuir o trabalho dos funcionários e o tempo
de espera nas filas. Para ter acesso ao serviço, eu não posso simplesmente me cadastrar em um
caixa eletrônico. Tenho que ir no atendimento ao cliente (e lá se vai mais no
mínimo meia hora de espera) para solicitar, pagar cinco euros – e ainda posso
acessar apenas meu saldo, sem poder fazer transferências ou qualquer outra movimentação
(ao menos para quem é imigrante).
Deu para ver que ser imigrante aqui não é
das melhores coisas né?
Também pudera. A Itália está passando por
uma imensa crise. Estudantes universitários sabem que não terão emprego ao
formar. Eles vão para a faculdade sem saber do futuro – e muitos tentam emigrar
para outros países europeus (principalmente os italianos do Sul, onde a
situação é pior ainda).
É assim: quem mora em cidades pequenas (os
chamados paesini) vem para Roma tentar ganhar a vida. Quem mora em Roma vai
para Milão. E quem é de Milão vai para outros países da Europa. Enquanto os
indianos e chineses estão todos vindo para qualquer lugar da Itália. (sim, meus
caros, esse é o nosso admirável mundo pós-moderno)
Também não chegou na Itália (ao menos não
em Roma) o conceito de bom atendimento. A gente vai pedir alguma coisa para os
atendentes, e eles sequer olham na sua cara. E quando olham é com cara feia.
Não sabem sorrir. Não sabem dizer “Buongiorno”. Dizem um sério “Prego”, você
pede o que quer, dá o dinheiro, eles jogam o troco e o cupom fiscal no suporte
em cima do balcão e passam para o próximo cliente.
Vai ver é por isso que tem tanta loja e
empresa falida por aqui. Eles acham que clientes brotam, não sabem que têm é
que conquistá-los.
Mas o conceito que chegou aqui foi o de
agilidade nas filas dos supermercados. Os funcionários do caixa passam os
produtos em uma velocidade impressionante. Enquanto você pega seu cartão dentro
da carteira, os produtos já estão todos lá para você por na sacola (que é
sempre paga aqui). São tão eficientes que se acumulam mais clientes guardando
as compras do que aguardando atendimento (não entendo porque não colocam também
outro funcionário eficiente para ajudar a embalar).
Outra lenda a se desmentir é a do transporte
público. Sim, ele pode funcionar relativamente bem em algumas cidades
europeias, mas em Roma ele é caótico. Existem apenas duas linhas de metrô que
se cruzam na sempre cheia Estação Termini, também estação de trem e terminal de
ônibus e ponto de táxi e casa dos moradores de rua. (Agora estão construindo
uma terceira linha, que já está ativa em alguns poucos pontos, mas que só
ficará totalmente pronta daqui váaarios anos.) Se você não mora perto do metrô,
precisa se virar com os ônibus (que com frequência estão lotados e são
demorados por conta do tráfico – também caótico) ou com os trams (bondes de
superfície, tão lentos que meus amigos dizem que compensa mais ir andando).
Eu sofro é com os tais dos trams. Ok, eles
passam perto da minha casa e com uma frequência razoável nos dias de semana.
Mas experimente pegá-lo em horário de pico (eu o fiz durante vários meses para
ir para aula às 8h da manhã). É uma coisa meio darwiniana – uma verdadeira luta
pela sobrevivência. Várias pessoas esperando no ponto e, enfim, passa um tram.
Lotado – mais lotado do que o temido ônibus 020 em Goiânia. Descem duas
pessoas, sobem cinco e não cabe mais nem uma mosca. E as outras 15 que não
conseguiram entrar esperam o próximo – junto a mais uns 10 que estão chegando
no ponto agora. E se acumulam pessoas. Você começa a entrar em desespero. Lá
pelo terceiro ou quarto tram você consegue embarcar (se for esperto) e lá se
vão uns 20 minutos (que mais parecem uma eternidade) para chegar à faculdade
sendo espremida e sem conseguir mexer o braço ou a perna – literalmente podendo
apenas piscar e (tentar) respirar e não cair durante as freadas. Um dia meu
braço estava tão esticado para conseguir segurar em algum lugar que desci do
tram até me sentindo mais forte – é quase uma musculação.
Sobrevive quem se adapta, diz a lei. E
realmente os romanos se adaptaram. Em meio à muvuca no tram, era normal eu escutar
pessoas fazendo piadinha da situação, ou reclamando com o desconhecido ao lado de
que o transporte sempre foi assim, ou fazendo planos com o colega ou a irmã
para acordar mais cedo no dia seguinte e tentar pegar o tram mais vazio, ou
brigando com o cara do lado que o empurrou ou que não quer abrir espaço (como
se fosse possível). De fato não deixava de ser divertido. Sem contar que com
esse frio tinha muitos dias em que eu, no ponto sofrendo com o vento gélido,
torcia para o tram vir cheio e assim eu me esquentar um pouco com o calor
humano.
Tudo não passa mesmo de adaptação.
E cá estou, há quase cinco meses me
adaptando à cidade de Roma.
Caótica. Mas cheia de História e de
estórias para contar.
Não deixa de ser Roma, não deixa de ser
linda, não deixa de ser um lugar onde um dia quero voltar (como turista,
claro).